29/12/2017

Auto(psycho)grafia


O poeta é um pecador.
Peca tanto, e tão somente,
que tem de fingir licor
o sangue que traz nos dentes.

E os que leem o que escreve,
na bebida sentem bem 
até o anjo, quando bebe
aos demônios grita: Amém!

E assim, embriagados,
sem dor nem religião,
conduzimos nosso arado
sobre ossos do coração.

A. F.

21/04/2017

O sangue ao redor


Toda manhã
o mesmo impasse
 como estancar
o sangramento?
Dessa sangria
nasce teu dia.

Deixa que o sangue
siga seu fluxo,
deixa correr,
é sangue apenas,
e vermelhíssimo.

Deixa que sangre
e vá descendo
pela garganta,
em tua camisa
e na toalha
branca, branquíssima;
deixa que escoe
por entre os dedos,
que abra caminhos,
que ganhe a pia,
também os canos
são boas veias,
veias são canos
de carne ou plástico,
veias contínuas
que levam a mares
de sangue. O sangue,

se tu soubesses
que é por vertê-lo
ao barbear-se,
em finos cortes,
algumas gotas
diariamente,
e só por isso
que sobrevives,
— mas até quando?
até que um dia
já não mais tenhas
como conter
o humano gesto

e com a gilete
que faz a barba
toda manhã
para estar vivo,
você, irmão,
pobre maninho,
venha cortar
os próprios pulsos
num movimento
raro, preciso,
como tivesse
sido ensaiado
— e o ensaiou,
diariamente,
por toda a vida
e muito antes
de ter nascido.

A. F.

* Imagem: cena de O som ao redor 
(2013), de Kleber Mendonça Filho

21/03/2017

Onde os garotos brancos dançam




* Imagem: Kids,
Daido Moriyama

Garotos
de 14 e quinze anos
vagueiam pelas ruas
da cidade iluminada
à procura de
qualquer coisa
leve.

Reparem nesses garotos
de 14 e quinze anos
que não pensam casar e
ter filhos, dois.
Que não aspiram
viver depois dos
30.

Eles não são os primeiros da

classe, nem
os últimos. Seus rostos não
serão lembrados ou
esquecidos  sequer
os fitaram.

Eles não criaram nada, nem
criarão. Não serão médicos,
operários ou funcionários
públicos.
Seus pais estão mortos e 
seus avós são
velhos demais para
dançar.

Atrás da igrejinha pro
testante,
eles abaixam as calças e
trepam. Garotos de
14 e quinze anos.

A. F.