02/12/2015

Éramos uma vez






* Imagem de Sally Mann
(1984-1991)

[1]

Éramos amarelos
como os canarinhos
e os girassóis.

Eu fazia a comida,
você alimentava
os dragões. Eu
escrevia os poemas,
você os queimava
na lareira.

Éramos um fogo só. 

[2]

Diziam, os vizinhos, quando
éramos amarelos,
que nossos olhos juntos
eram mais que o sol.

Deus sempre vinha
tomar uísque
em nossa casa
de bonecas.
(Éramos amarelos
e cristãos.)

[3]

Mas isso foi antes
daquele verde
nos seus olhos.

Era domingo
e na tv
nada entretinha
as nossas vísceras.

Você, entre um comercial
e outro, alimentou florestas
ao invés de dragões.

(Era domingo demais
para uma natureza
assim tão vasta,
assim tão brusca.)

Quis sair: mas é domingo.
Era domingo, não
entendi.
Quis sair, eu disse: fica.
Com te conter, eu
te perdi.

[4]

Eu, sozinho,
dei de beber coca-cola
e escrever poemas
pra não queimar depois.

Os dragões morreram todos.
Não sei se de fome. Não sei
se de tédio.



07/11/2015

Mais populares que Jesus Cristo



* Imagem: Garry Winogrand (1928–1984)


[  ]

Deus não está morto
– porque Coke é Deus
e desce gostoso na garganta
enquanto a gente se mastiga.

(Mais populares
que Jesus Cristo
os nosso métodos
de tortura.)

Se eu te mostrasse
a materia
da poesia...
talvez você se matasse,
talvez tu me matarias...
talvez a gente beijasse
os pés da Virgem Maria...
talvez a gente brincasse
com a matéria da poesia.

Estamos nos torturando
desde o início dos séculos,
e o antes disso, meu bem,
éramos nós também.

Deus não está morto,
porque Deus são nossas bocas
undergrounds.

A. F.

18/04/2015

Sobre as calopsitas

Houve um tempo
em que era preciso morrer
— e nós morríamos,
de câncer ou de tiro,
de agá-i-vê ou aéroplano...

A gente adorava morrer
— e morríamos aos montes
em guerras tão bonitas,
genocídios adoráveis,
suicídios exemplares...

E nossos jardins
eram imensos cemitérios...
E nossas casas
eram repletas de fantasmas...

A. F.

12/02/2015

Borboletário


[abril de 2009/fev. de 2015]

Desde os 13
o meu quarto
está repleto
de borboletas,

borboletas
na janela,
borboletas
nas gavetas,

borboletas
amarelas,
borboletas
pretas,

borboletas,
borbotetas,
borbocetas,
borboletras.

A. F.

* Imagem: Young Andy (1995)

09/01/2015

O foxtrote dos desiludidos




Como o salão é todo espelhado,
uma hora você acaba se enxergando
severo, severo demais.
Você sabe que perdeu no jogo
qualquer coisa que te fará muita falta,
mas a banda continua, inflexível,
porque o show é bem maior que a vida.

É a primeira vez que você dança
o foxtrote dos desiludidos,
mas a dama não vai perdoar
o seu menor deslize.
Você dança, algo entorpecido,
e pensa em quanto ainda falta
para a hora do embargo total.
Mas a banda continua, inflexível...
zomba de tua desjuventude.

A dama quer tentar aquele giro
que você se esqueceu de ensaiar.
— Hoje você tem dezenove, ela diz,
amanhã terá trinta. A temporada
de ensaios it's over. E rindo:
Todas as formas de suicídio, darling,
resultaram/resultarão inúteis.

Você ri também (em todos os espelhos
suas mãos espalmadas contra o tempo).
Mas a banda continua, inflexível,
enquanto a dama desliza (e com que
facilidade, e com que doçura) para
os braços de um cara mais jovem.

A. F.