27/07/2013

A arte de limpar retratos


Delicadamente ponho
os retratos na estante -
fundem-se poeira e sonho
nas relíquias do viajante.

Demoradamente ponho
os retratos na estante -
fundem-se poeira e sonho
nas marcas do elefante.

Desgraçadamente ponho
os maus-tratos na estante -
fundem-se poeira e sonho
nos retratos do aspirante.

A. F.

18/07/2013

Nos seios fartos do meu travesseiro

Mais uma vez acordo
no auge dos meus 17 anos.
Ainda estou em casa e os sonhos
ainda são aqueles.

A poesia sexual
dança debaixo
do edredom
- são as mãos febris lutando
no escuro.

Flutuam no ar imagens
de um pornô qualquer
que fogem, feito salamandras,
pra debaixo da cama onde
dormem natimortos.

É meu trabalho decifrar esses códigos
diariamente. Trabalho duro
que me arranca o gozo.

A. F.

(35 x 21 cm) de Luiz Telles

14/07/2013

Olheiras

Levo debaixo 
de cada olho
um discurso
ao vento

 se digo amém
aos domingos

é porque faltam
palavras

A. F.

12/07/2013

Sejamos infantis - amemos

Sejamos infantis - amemos
como amam os lírios e as estrelas
os dragões e os bibelôs
os alemães e os girassóis...

(Amemos
como amam a vida
os suicidas...)

Amemos
sem nenhum pudor, amemos!
Qualquer coisa, a qualquer modo...
sem qualquer razão. Amemos,
tão somente amemos...
Amar, e só.

                         A. F.
* Desenho: Nas quietas
beiradas de  Daniloz


02/07/2013

Poema vadio

Numa rua qualquer eu vejo um cão
e o cão me vê.
Nos entreolhamos: não há anteolhos
nem filosofias.

Vejo o cão mas não reparo o cão
e nem o cão desvenda
o meu segredo.
Não há trânsito.

Daqui a pouco o cão irá passar
- eu também hei de passar -
e nada disso terá importância.
Mas há algo novo, inteiramente novo
acontecendo aqui:

entre mim e o cão
um poema
se elabora.

E pra qualquer lado que decidirmos ir,
a partir de agora, será a caminho
da eternidade.

A. F.